domingo, 29 de novembro de 2015

O pensamento de Hannah Arendt


Hannah Arendt, filósofa política alemã, judia, que viveu no século XX e que foi fortemente marcada pelo quadro de destruição constituído pelas atrocidades sofridas pela humanidade, principalmente no período das duas grandes guerras. Assim, o pensamento arendtiano se constitui numa “oportunidade de reconstrução” da política no mundo pós-totalitário, pois busca compreender tal sistema para não só entender um fato ocorrido, mas, também, uma vez compreendendo-o, evitar que a humanidade caia na reincidência do mesmo.
Hannah Arendt (1906-1975) dedicou-se à ciência política sendo aluna do filósofo Martin Heidegger (1889-1976). Ao adotar uma perspectiva liberal, que não se alinhava com os extremos ideológicos, Arendt construiu um pensamento independente e crítico, até mesmo, às vezes, em relação a grupos com os quais compartilhava ideias, como os sionistas e a esquerda não marxista.
Como uma cientista política interessada no fenômeno do pensamento e no modo como ele opera em “tempos sombrios”, Arendt ocupou-se também do ensino quando as salas de aula nos Estados Unidos – para onde se mudou em 1940 – se viam invadidas por questões sociais como a violência, o conflito de gerações e o racismo. “A função da escola é ensinar às crianças como o mundo é, e não instruí-las na arte de viver”, escreve Arendt. Sua argumentação é a favor da autoridade na sala de aula e sua visão educativa é assumidamente conservadora acreditando que o aluno deve ser apresentado ao mundo e estimulado a mudá-lo. 
Hannah Arendt defendia que os adultos têm dois tipos de obrigação em relação às crianças. Uma recai sobre a família, responsável pelo “bem-estar vital” de seus filhos. Outra fica a cargo da escola, a quem cabe o “livre desenvolvimento de qualidades e talentos pessoais”. Ela acusa a educação praticada nos Estados Unidos à época da publicação do artigo de abrir mão de sua função ao rejeitar a autoridade que decorre dela. “Qualquer pessoa que se recuse a assumir a responsabilidade coletiva pelo mundo não deveria ter crianças e é preciso proibi-la de tomar parte na educação”, escreve Arendt.
Arendt defendia o conservadorismo na educação, mas não na política a qual deveria se renovar constantemente, movido pelos objetivos da igualdade e da liberdade civil. Ao reivindicar a total separação entre política e educação, Arendt rejeita linhas de pensamento que partem de filósofos como Platão (427-347 a.C.) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). 
A preocupação com a perda da “tradição”, definida como “o fio que nos guia com segurança através dos vastos domínios do passado”, foi o que levou Arendt a escrever sobre educação. A relação entre crianças e adultos não pode, segundo ela, ficar restrita “à ciência específica da pedagogia”, já que se trata de preservar o patrimônio global da humanidade. “A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele”, escreve Arendt, acrescentando que “a educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos”.
 No ano de 1961, ela foi enviada a Israel para cobrir o julgamento do alto burocrata nazista Adolf Eichmann. No livro Eichmann em Jerusalém, a pensadora cunhou a expressão que a celebrizou: “a banalidade do mal”, em referência aos códigos aparentemente lógicos e até sensatos com que o totalitarismo se propaga e ganha poder. Em Eichmann, um homem de aparência equilibrada e comum, Arendt identificou alguém habituado a não pensar. Os perigos da irreflexão, como sinal de alienação da realidade, constituem um dos principais eixos de uma obra que pode trazer contribuições para a educação em muitos aspectos. 
 “(...) permanece também a verdade de que cada fim na história contém um novo início; esse início é a promessa, a única ‘mensagem’ que o fim pode produzir. O início, antes de se tornar um evento histórico, é a suprema capacidade do homem; politicamente, é idêntica à liberdade do homem. Initium ut esset homo creatus est – ‘para que houvesse um início, o homem foi criado’, disse Agostinho (A cidade de Deus, livro 12, cap.20). Esse início é garantido por cada novo nascimento; é, de fato, cada homem”. Hannah Arendt
Arendt demonstra que a verdade não pode se estabelecer rejeitando a opinião; a verdade válida para todos em qualquer circunstância e lugar, não é possível aos mortais. Por isso é necessário ver em cada opinião a verdade.
A pluralidade expressa na opinião se manifesta em todo fazer humano. Assim, a política enquanto expressão do ser entre-os-homens, no fazer comum, se baseia, portanto, nessa pluralidade porque esta é a condição para o emergir da ação. Por isso, a ação está ligada à diversidade de possibilidades presente no novo, expresso no nascimento. Atentando para o significado da palavra, Arendt demonstra que os homens, ao nascerem, são iniciadores de algo (são impelidos a agir); e, como cada ser humano é uma singularidade, dele se pode esperar o infinitamente improvável, porque cada nascimento é algo singular, portanto, é algo novo. Agir significa tomar iniciativa, iniciar (do grego archein, “começar” e, finalmente, “governar”). Trata-se de um início que difere do início do mundo, pois é o início de alguém que é, ele próprio, um iniciador. A ação, baseada nessa diversidade promovida pelo totalmente novo de cada nascimento, preza pela liberdade, uma vez que aquela só é possível por meio do encontro entre sujeitos livres; que se apresentam ao mundo por meio da ação e do discurso, e, por meio destes, buscam a imortalidade. Assim, apresentar-se por meio da ação e do discurso é revelar ao mundo a própria identidade; aparecer no “palco da existência”, de modo que a realidade do mundo passa a ser assegurada pela presença do outro.
A ação política surge como uma necessidade de diálogo entre estas “universalidades particulares” que são os homens, pois, estes, precisam chegar a um acordo sobre o viver comum, o ser-em-comum; portanto, deve derivar do relacionamento entre os homens. Assim, “a política trata da convivência entre diferentes. Os homens se organizam politicamente para certas coisas em comum, essenciais num caos absoluto, ou a partir do caos absoluto das diferenças”. (ARENDT, 2002, p. 21-22)
Insta salientar a relevância que Hannah Arendt atribui à dimensão do diálogo, pois, para que este exista, é preciso que prevaleçam alguns critérios: seres de capacidade racional - simbólica, portanto humanos; livres, que se entendam entre si e se manifestam, portanto, iguais e que, ao mesmo tempo, apresentam diversidade de ideias, pensamentos, modos de ser, entre outros, que formam identidades diversas. Portanto, entre seres, paradoxalmente “igualmente plurais”. A pluralidade humana, condição básica da ação e do discurso, tem o duplo aspecto da igualdade e da distinção. Se não fossem iguais, os homens não poderiam compreender uns aos outros e os que vieram antes deles, nem fazer planos para o futuro, nem prever as necessidades daqueles que virão depois deles. Se não fossem distintos, sendo cada ser humano distinto de qualquer outro que é, foi ou será, não precisariam do discurso nem da ação para se fazerem compreender. Sinais e sons seriam suficientes para a comunicação imediata de necessidades e carências idênticas. (ARENDT, 2010, p. 219-220) A política, nesta dimensão, tem como sentido a liberdade. Portanto, ela só é possível por meio da reunião e discussão de seres igualmente livres e diversos, que chegam a um acordo comum para a convivência.
Embora Hannah Arendt elenque pilares sólidos para o totalitarismo, tirados do decorrer da história, ela não busca apresentar elementos que na processualidade da mesma, necessariamente, levariam ao surgimento de Estados Totalitários; mas seu intuito é investigar elementos históricos que se consolidaram no Totalitarismo e que, nos campos de concentração, encontram a sua radicalidade evidenciada em seus máximos níveis. Os campos de concentração foram a concretização máxima destas ideologias; pois foi a instituição cerne do poder organizacional deste regime.
Os campos de concentração e de extermínio dos regimes totalitários servem como laboratórios onde se demonstra a crença fundamental do totalitarismo de que tudo é possível. Comparadas a esta, todas as outras experiências têm importância secundária (...). (ARENDT, 1989, p. 488) Desta forma, a partir das marcas deixadas pela ruptura totalitária, das quais nunca a humanidade pode esquecer, além da compreensão deste fenômeno, é preciso que, no mundo pós-totalitário, se garanta aos seres humanos direitos a partir de sua condição.
Ao contrário do que diz o artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (1948), ou seja, que todos nascemos livres e iguais em dignidade e direitos, Arendt demonstra que: Nós não nascemos iguais: nós nos tornamos iguais como membros de uma coletividade em virtude de uma decisão conjunta que garante a todos direitos iguais. Portanto, ao perceber que esta igualdade é construída e legitimada pela coletividade, verifica-se a necessidade institucional para a existência destes direitos que atribuem ao ser humano este caráter isonômico. Assim, os direitos humanos carregam como fundamento uma noção de cidadania como princípio do “direito a ter direitos”, pois a privação da mesma, afeta o homem substantivamente; uma vez que, faz com que ele perca o seu estatuto político, suas qualidades acidentais. Para Arendt, assegurar direitos aos homens é contribuir para a preservação do mundo como local privilegiado da liberdade.
Estabelecer direitos para o ser humano, que lhe garantam a sua peculiar forma de existir no mundo, se faz necessário frente a este universo de possibilidades a partir das quais se concretiza a história. Assim, a política ganha espaço para existir em seu sentido pleno.
Hannah Arendt exerce uma função fundamental onde, ao remontar à práxis política grega, demonstra que o verdadeiro sentido da política é, expressamente, a liberdade. Assim, uma dominação total, como se caracteriza a busca empreendida pelo poder totalitário, não pode existir num espaço marcado pela política em seu sentido pleno, ou seja, na liberdade originada pela igualdade plural de ser num espaço comum. Portanto, se faz necessário o “esquecimento” da política para a legitimação de um poder totalitário.
Assim, a sociedade de massas traz como característica pessoas que não vivem juntas por interesses comuns, ou para construírem juntas um espaço de liberdade; mas sim e, unicamente, para a saciedade de suas necessidades ligadas à sobrevivência individual e da espécie. São politicamente indiferentes, neutras, em grandes números e não podem ser reunidas em uma organização que defenda algum interesse comum. O espaço público, desta sociedade, é dominado pelas relações comerciais de produção e consumo em massa, onde o trabalho, tido como fonte produtora de riquezas, é atribuído de maneira essencialista ao ser humano, de modo que o indivíduo, destituído de sua singularidade, se mistura aos bens materiais que produz.
O pensamento de Hannah Arendt demonstra que o convite feito pela política, desde seu surgimento, é a radical democracia, lugar em que o poder se faz pela capacidade de ação em conjunto; onde, agir em conjunto não significa somente cuidar de si mesmo (como propõe o modelo político originado pela inversão moderna), mas a partir de uma vida em comum, criando possibilidade de existência para todos, tanto para os que já estão, quanto para aqueles que, pelo seu ineditismo, aparecem no “palco da existência”.


Referências bibliográficas


ARENDT, Hannah. A condição humana. 11 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. 406p.
_________. Compreender: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 490p.
_________.Entre o passado e o futuro. 6 ed. São Paulo: Perspectiva, 2009. 348p.
_________. O que é política? 3 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. 238p.
 _________. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 562p.


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