sexta-feira, 18 de março de 2016

O direito a terra como um direito humano


Maria Rosilene de Moraes¹


A distribuição de terras sempre esteve envolta em revoltas e conflitos. O Presidente do Brasil, João Goulart em 1963, em resposta à pressão oriunda do campo, permite a criação de sindicatos rurais e da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG).
Depois do golpe militar no Brasil, em 1964, o general Humberto de Alencar Castelo Branco assumiu a Presidência da República e, não por acaso, a questão agrária foi uma das intervenções primordiais do novo governo que prometeu a retomada do crescimento econômico e o retorno do Brasil ao que se poderia dizer “normalidade democrática”.
 Ocorrida a ascensão e permanência do regime militar, o movimento das Ligas é desarticulado e a CONTAG fica sob intervenção até 1968. O Estatuto da Terra, Lei n. 4.504/1964 reconhecia o direito de propriedade aos que tivessem a posse da terra, os direitos dos que a arrendavam e também dos que trabalhavam em terra alheia, e ainda, era adepta da "função social da propriedade", como critério para desapropriações de terras para reforma agrária no país.
Dessa forma José de Souza Martins, observa:
Apesar das variações da política governamental em torno do tema da questão agrária, ao longo destes dezoito anos de governo militar, esse ponto doutrinário permanece intocado: a despolitização da questão fundiária e a exclusão política do campesinato das decisões sobre seus próprios interesses, que redundam basicamente em restrições severas à cidadania dos trabalhadores do campo. Além, é claro, do banimento da atividade política do campo, sobretudo a dos grupos populares e de oposição que assumem como corretas as lutas camponesas (MARTINS, 1982).
Assim, a força política dos proprietários de terra juntamente com a importância da agricultura para o desenvolvimento brasileiro levou o governo à modernização da produção rural que diminuía a mão de obra aumentando significativamente o número de trabalhadores rurais sem-terra, ou, talvez tivessem terra, mas não tinham recursos para garantir a subsistência de da propriedade e da família.
Em relação aos direitos humanos, a política do governo ditador foi condenar a ação de grupos, em geral religiosos, que interferiam na soberania nacional, e destacar a ação do governo na promoção dos direitos humanos e sociais.
Jimmy Carter, presidente do EUA, em 1977, chegou a pressionar o governo brasileiro pela sua responsabilidade nas violações de direitos humanos.
Em 1985, findando a ditadura militar e recuperando os direitos civis e políticos no plano nacional não houve diminuição da violência e da impunidade no campo. Destarte, a reforma agrária ampla foi frustrada.
No período de 1997 e 2009, das 42 denúncias admissíveis em conformidade com os relatórios anuais da CIDH (Comissão Internacional de Direitos humanos) 16 estavam relacionadas à questão da terra e à violência no campo: assassinatos de líderes sindicais rurais e também em evacuação de terras, invasão de terras indígenas, desrespeito a terras quilombolas, grampos telefônicos de lideranças rurais, grilagem e uma referente à guerrilha do Araguaia. Nas decisões de mérito publicadas nesse período, e também no acordo referente a denúncias de trabalho escravo, o CIDH reconheceu a responsabilidade do Estado brasileiro nas violações, recomendando, por isso, investimentos na realização de investigação, punição e indenização das vítimas e seus familiares, ressaltando a importância de se buscar soluções pacíficas para o problema da terra e maior eficiência das forças policiais e do Judiciário.
Mediante o crescimento da rede transnacional de apoio dos grupos de direitos humanos e ambientalistas, a demanda pela terra foi vista como demanda por um direito humano. Antonio Canuto e Leandro Gorsdorf defendem veementemente que a terra é um direito humano, "a partir da leitura e análise de outros direitos e princípios garantidos em convenções ou tratados internacionais e/ou em Constituições Nacionais, como o direito à vida e à dignidade da pessoa humana, ao território, à alimentação e à moradia" (CANUTO; GORSDORF, 2007).
 Estes mesmos autores argumentam que a necessidade de se ver a terra como um direito humano se baseia: 1. na relação da posse da terra com os outros direitos humanos; 2. na cultura da proteção da propriedade relacionada às necessidades individuais; 3. numa ideia de território e 4. na relação entre concentração fundiária e violência no campo no país.
Assim, a formulação da terra como um direito humano parte de uma interpretação entre homem e terra permeada pelos movimentos sociais, redes transnacionais e organizações internacionais, construindo um novo direito humano, e reinterpretando os direitos humanos como um todo.
O Estatuto da Terra é reforçado pela Constituição Federal quanto à propriedade, no capítulo dos direitos fundamentais das pessoas (art. 5º, XXII e XXIII) e responsabiliza o Estado a fazer com que a terra cumpra a sua função social.
A função social da terra é cumprida quando atende ao mesmo tempo as exigências conforme art. 186, CF/88, in verbis:: 
Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
- aproveitamento racional e adequado;
II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
Se as lideranças governamentais não cumprem  seu dever de fiscalização das terras improdutivas, para distribuí-las aos que querem produzir, então os trabalhadores reivindicam a reforma agrária que deve ser sem violência.
As terras que não estão cumprindo sua função social podem ser desapropriadas pela União para realização da reforma agrária segundo o art. 184, CF/88, caput:
Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.
  No Brasil, mesmo com os direitos garantidos no Estatuto da Terra de 1964, na Constituição Federal de 1988 e, mais recentemente, em 1993, na lei nº 8.634, que confirmam o direito à reforma agrária ainda existem terras em situação irregular quanto à sua função social e agricultores sem terra para trabalhar.
Notório é que o direito de propriedade vem sofrendo restrições tanto no âmbito privado e no público, tendo mais obrigações do que direitos. Insta salientar que a função social da terra não se limita ao domínio, mas como a propriedade, deve realizar a sua função social, segundo a Magna Carta, para implementar o Estado Social e o Estado Democrático de Direito.


Referências bibliográficas

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
BRASIL. Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964.
BRASIL. Lei nº 8.634, 12 DE Março de 1993.
CANUTO, A.; GORSDORF, L. "Direito humano à terra: a construção de um marco de resistência às violações. In: RECH, D. (coord.) Direitos humanos no Brasil 2: diagnósticos e perspectivas. Rio de Janeiro: Ceris; Mahuad. 2007. 
MARTINS, J. S. Os camponeses e a política no Brasil. Petrópolis: Vozes. 1981.


¹ Maria Rosilene de Moraes. Centro de Ensino Superior de São Gotardo. Faculdade de Ciências Gerenciais. Aluna do Curso de Direito. Graduada em Ciências pela PUC/MG. Graduada em Matemática pelo Instituto ISEED/FAVED. Pós-graduanda em Educação Empreendedora pela UFSJ. Pós-graduanda em Gestão Escolar pela UFOP. E-mail: rosil_moraes@hotmail.com